O outono é mais bonito lá em cima. (por mim)


    O moço disse que depois da construção do restaurante tudo ia ficar melhor para nossa família, até o Floco ia ter uma ração melhor para comer. Eu gostava muito do Floco porque ele era o único gato que a mãe me deixou ficar. Ela dizia que incomodava o nariz, provocava rinite, mas eu sabia que a verdade era que faltava dinheiro para comprar comida para todos. Uns foram para amigos, outros para os vizinhos, e o Floco ficou. Eu não entendia muito o que o moço falava, ele usava palavras que eu não aprendia na escola, e a matemática dele era muito mais complexa da que eu usava para conferir o troco na feira. Eu olhava para os dentes dele, amarelos. Ele tinha uma boca que parecia não suportar a quantidade de dentes que tinha lá dentro, uns tentando tomar o lugar dos outros, sujos. Eu olhei para os dentes do meu pai apenas para confirmar o que eu já sabia: ele tinha dentes melhores e mais limpos, honestos. Mas ele tinha as mãos sujas, terra embaixo das unhas e calos no encontro dos ossos. Como alguém com tanto dinheiro tinha a boca tão suja?

    O outono era muito bonito onde eu morava, eu saía com meu moletom de frio, rosa, para fora da casa e ficava admirando as folhas vermelhas e marrons que caíam, até mesmo no pote de água do Floco. Quando o restaurante ficou pronto, lá em cima do morro, eu vi que na verdade o outono era feio aqui embaixo. Lá em cima sim que era bonito, as árvores eram cuidadas, o caminho era cuidadosamente feito para encantar os olhos dos que vinham de fora, dos que falavam engraçado, diferente do jeito que todo mundo falava na escola. Pedi pro meu pai o que era comida orgânica; eu tinha escutado uma mulher falando sobre isso saindo do restaurante no domingo. Eu não era de bisbilhotar ou ficar escutando os que falavam engraçado, mas os carros sempre passavam pela minha casa quando entravam e saíam lá de cima do morro. Eu sabia o que era feijão, porque a minha mãe plantava quando dava. Alface eu também conhecia, o vizinho vendia para nós antes de ir vender na feira. Macarrão eu adorava, mas fazia tempo que eu não comia. Carne fazia mais tempo ainda. Eu também conhecia o pão que a minha mãe fazia quase todas as manhãs, quentinho no inverno. O mel que o meu tio produzia eu também conhecia; eu adorava colocar em cima do pão quentinho e ver como ele entrava nos furinhos da fatia. Comida orgânica eu não conseguia entender o que era, mesmo quando meu pai explicou, para mim era a mesma coisa que eu comia; não vi diferença alguma. 

    Eu lembro da época em que não tinha restaurante nenhum lá em cima, quando os únicos moradores eram as ovelhas do meu pai. Eu amava abraçar elas antes do inverno, quando ainda estavam gordas de pelo. Desde que o moço com a boca suja veio lá em casa, nunca mais vi as ovelhas. Desapareceram quase mais rápido que os irmãos do Floco. Antes eu podia correr e brincar por aquelas terras, correr atrás das ovelhas e ficar brincando com o filho do vizinho; mesmo com a minha mãe dizendo que menina jovem assim não devia ficar sozinha com menino; eu ficava pensando se o pai dele falava a mesma coisa sobre mim. Eu nem gostava tando dele, chamava para brincar pela companhia. Depois que o restaurante chegou, meu pai disse que eu não podia subir mais lá. A terra não é mais nossa. Agora eu não brincava mais, ficava apenas olhando para os carros que chegavam; eles eram muito grandes, com certeza maiores que as ovelhas. Às vezes chegavam algumas crianças que tinham a minha idade. Uma vez eu pedi à minha mãe se eu não podia ir brincar junto com elas. Minha mãe me bateu e disse que era para eu parar de pensar em bobagem. Depois pensando melhor eu acho que ela estava certa, aquelas crianças não tinham interesse em brincar comigo. Mexiam nos celulares, e eu ficava pensando o que elas faziam tanto naquele aparelho. Eu pensei em pedir pro meu pai um celular de aniversário; mas depois eu lembrei que o Floco quase não tinha mais ração. 


by: theroseminusblack

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