Já não aceito mais a luz do sol. (por mim)

 

    Nem mesmo o ar entrando pelas minhas narinas tinha a mesma sensação naquela manhã. Ele não era mais ungido por aquele perfume doce, sustentava apenas meu corpo, e não mais minha alma. Sentia estranho meu contato com os lençóis, incomodava-me. A luz que entrava pela janela já não era mais aceita, era como uma batida na porta que me tirava de um transe. Eu queria escapar da vida, mas o sol não deixava, o sol e o despertador do celular. Fazia uma semana que as coisas não eram mais iguais; até o horário do despertador tinha mudado, a tela do celular mostrava uma imagem genérica dos fiordes da Islândia. Eu não sabia de quem era a foto, não fazia ideia de onde ficava aquele lugar, eu só queria mesmo era poder voltar com a minha imagem antiga; voltar não apenas na tela iluminada do celular, mas na companhia de corpo e calor.

    O tênis me servia estranho, as calças me incomodavam quando eu sentei na janela para apreciar, digo, fitar a cidade que levantava junto com a neblina. Eu me sentia mais frio que o vidro marcado pelo gelo. Eu precisava arrumar a porta da geladeira. O leite estava cheirando, o pão já mofado, as frutas pretas e podres. Engraçado como aquela cozinha parecia ser muito grande alguns dias atrás, como eu pensava em preparar pratos elaborados, juntamente com os planos que nós fazíamos. Antes eu pensava em queijo, vinho e chocolate, no cheiro do café que apenas perdia para o perfume doce. Eu queria saber se alguma loja vendia aquele perfume; será que ele mesmo existiu, ou era apenas mais um dos delírios da minha mente que era mais feliz do que suportava ser. O cheiro do café ainda era bom, mas isso era claro, eu ainda vivia, pelo menos por fora eu ainda estava inteiro, a carne sentia. 

    Como era frio o banheiro no inverno. Eu procurava o tapete para conseguir manter meus pés longe do contato com o frio do piso branco; pelo menos o restante do apartamento tinha chão de madeira. Não tinha mais pasta de dente, só uns tubos com rótulos estranhos que eu nunca entendia por que estavam lá. A água era fria, mas isso também era óbvio, como eu não havia notado isso antes, era eu tão ignorante ao que acontecia ao meu redor antes de tudo isso? Ou será que antes não fazia diferença nenhuma para mim? Achei grotesco o reflexo que me encarava no espelho, mas não era o mesmo que eu achava bonito antes? Não era o mesmo que me dava orgulho? Não era aquele que tinha um sorriso bobo e não sabia? O cabelo, patético. O nariz, com cravos. As bochechas, mais salientes. Os lábios, estranhos. A testa, pálida. 

    Eu sempre quis morar aqui, tocar violão no jardin des tuileries, fumar um cigarro e beber uma taça de pinot noir, aprender uma língua nova e ler alguns bons livros. Eu sabia o que eu precisava fazer: lembrar do meu primeiro ano aqui, dos sonhos que eu tinha, das fotografia que eu queria fazer, das pessoas que eu queria conhecer, dos beijos que eu queria roubar, era só fazer isso e ponto. Não precisava ser assim, nem sempre foi. O que cabia dentro de mim já foi, na verdade é, o suficiente para minha alma se manter. O jeito é começar a fazer tudo de novo, mas dessa vez diferente. Talvez eu pudesse mudar as músicas e ler outros autores. Eu sempre podia conhecer outros lugares daquela cidade, pessoas com diferentes visões. Eu queria mesmo era encontrar alguém pra conversar sobre Valter Hugo Mãe, acho que eu não poderia ter escolhido época melhor da minha vida para lê-lo. Quando me diziam sobre o inverno eu não acreditava que seria tão ruim, o início não tinha sido, talvez agora eu notasse por causa da solidão. Agora vou parar de pensar nisso, vou mesmo é pegar alguns trocados que consegui com a minha música e comprar um café. Tudo vai ficar bem. Acho que já tava enjoado daquele perfume doce. 




by Henrik Purienne

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