"Sargento Garcia" (conto do livro "Morangos mofados") - Caio Fernando Abreu

Título do conto: Sargento Garcia
Autor: Caio Fernando Abreu
Ano de publicação: 1982


Compre o livro na Amazon através do link do Outside the Café, e ajude o blog com livros e cafés.


    Então, me pego em uma manhã de terça-feira lendo um dos melhores contos do Caio Fernando Abreu que já li até agora, não me surpreende o prêmio Status de Literatura que ganhou em 1980. "Sargento Garcia" se encontra na parte dos "morangos" no livro de contos "Morangos Mofados". A vida do Caio influencia toda a sua obra; suas filosofias, pensamentos, orientações e interesses formam um fio condutor que percorre todas as suas narrativas. Refugiava-se do DOPS no final da década de sessenta, também se exilou por um ano na Europa, retornando para Porto Alegre em 1974. Caio nasceu em uma pequena cidade perto da fronteira chamada Santiago, aqui no estado onde eu moro (RS); fico imaginando como um menino que nasceu em uma cidade que hoje tem cerca de cinquenta mil habitantes, deve ter se sentido sendo perseguido pela ditadura militar e ter tido que se exilar na Europa. É indiscutível que os contos do Caio são permeados por seus gostos particulares; não é  difícil encontrarmos personagens que bebem mais café do que deveriam, fumam muito, escutam Beatles e falam de astrologia. 
    Na maioria dos seus contos, a sexualidade é muito discutida, ainda mais o mundo queer e LGBT ; Caio Fernando Abreu era gay, crítico da ditadura e um formador de mentes de uma geração. "Sargento Garcia" consegue pincelar muito bem as angústias tanto do particular (personagem principal), quanto do mais amplo (a geração de jovens que viveu a ditadura militar). O personagem principal do conto, Hermes, devaneia olhando para fora da janela do local em que se apresenta para o serviço militar obrigatório. Diferente de hoje, o quadro que está na parede descasada do cômodo é o de Castelo Branco, o que nos dá a ideia de que o conto se passa provavelmente nos anos iniciais da ditadura (Castelo Branco ficou no poder de 1964 a 1967). O sargento que chama Hermes, no caso o próprio Sargento Garcia do título do conto, é austero e ríspido com sua fala, mas acaba dispensando Hermes, que afirma ter arrimo familiar e estar estudando filosofia. O conto é dividido em três partes, sendo que a primeira relata apenas isso que foi resumido nesse parágrafo. 

    A segunda parte do conto descreve a transição dos dois personagens para um plano diferente da narrativa. Enquanto Hermes desce um morro para ir até uma estação, o próprio sargento Garcia vem vindo de carro, um cigarro no canto da boca. O militar insiste que o garoto entre no carro, até que Hermes aceita a carona. Nas falas do sargento enquanto está dirigindo, conseguimos entender que ele possuía um apreço um pouco maior por Hermes, mostra-se interessado na faculdade de filosofia, e pergunta sobre o modo que o garoto vê o mundo. No carro, fica claro mais um ponto muito forte do período ditatorial, em uma das falas do Sargento: 

"... A vida me ensinou a ser um cara aberto. Admito tudo. Só não aguento comunista."

    O sargento pede para o garoto se ele não quer ir para algum lugar mais reservado, e já coloca a mão nas pernas do estudante de filosofia e recém-dispensado do exército, Hermes. Ele diz que nunca tinha feito sexo, que seria sua primeira vez, mas acaba não ficando claro se estava falando de transar pela primeira vez com um outro homem, ou se realmente foi sua primeira vez. Sargento Garcia diz que conhece um lugar, que Hermes pode seguir ele um pouco atrás para ninguém desconfiar que estão juntos.

    Na terceira parte é quando vemos o ato se concretizar, Hermes e o Sargento chegam a um quarto alugado por uma mulher chamada Isadora. Na fala de Isadora entendemos que na verdade ela é ele:

"- Isadora, queridinho. Nunca ouviu falar? Isadora Duncan, a bailarina. Uma mulher finíssima, má-ravilhosa, a minha ídola, eu adoro tanto que adotei o nome. Já pensou se eu usasse o Valdemir que minha mãe me deu?"

    Quando vão para o quarto, o sargento diz para o garoto se despir e deitar na cama; em seus olhos, Hermes conseguia ver a fúria do desejo. A cena que é relatada é muito mais de estupro do que de um sexo consentido, em passagens como: "... com os joelhos, lento, firme, ele abria caminho entre as minhas coxas, procurando passagem", ou em "... quis gritar, mas as duas mãos se fecharam sobre a minha boca.". É interessante o leitor prestar atenção à música que é cantarolada por Isadora no cômodo do lado, é um bom plano de fundo para os pensamentos de Hermes. Se tudo isso que já apresentei não é suficiente para descrever o estado de espírito do menino, o campo semântico usado para descrever o ato ilustra minha opinião. Um grande conto de um grande escritor, que como já disse em um post do Instagram (@vazios), deveria estar sendo lido no tempo de intolerância que estamos vivendo.




3 comentários:

  1. Esse conto é foda, cara. Esse livro é foda também. Tem um curta lançado no ano 2000 baseado nesse conto, com o Marcos Breda, inclusive foi bem premiado. Caio é um dos escritores mais fantásticos da nossa literatura contemporânea, foi chamado de "a Clarice Lispector de calças" (como se a Clarice não usasse calças... rs). É um dos meus autores preferidos e te recomendo continuar a ler as coisas dele. Tu vai se surpreender mais!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Clarice Lispector de calças hahaha ainda não ouvi tudo mesmo.

      Excluir
    2. Hahahaha. Pois é. Um dos contos dele que eu mais gosto se chama Pequeno Monstro. Tá no livro Os Dragões Não Conhecem o Paraíso.

      Excluir